domingo, 2 de novembro de 2008

Parte 1 O Continente

— Contam os antigos que ouviram de seus avós essas lendas contadas desde sempre entre todos os povos... -dizia o velho Almodóvar, tremendo em sua bengala de pinheiro. Ao seu redor um círculo admirado de crianças atentas, que exclamaram em uníssono:
— HOOOOOOO...
O velho sorri e continua a história, puxando os detalhes de sua antiga e já debilitada memória:
— Meu avô contava que no princípio era apenas a Deusa e a Deusa criou o mundo em que vivemos – gesticula o velho, abrindo os braços como se abraçasse toda a Continente — Entediada, a Deusa deu a luz a dois dragões...
— Eldora e Karveck!!! – respondem as crianças num coro de quem conhece de cor, mas não se cansam de ouvir essa mesma história.
— Eldora e Karveck, os Grandes Dragões. Kerveck é um dragão negro e representa o aspecto maligno da criação da Deusa...
— E Eldora representa os mocinhos... — completa uma outra voz atrás das crianças. Todas elas se viram e se deparam com um nobre guerreiro apoiado em sua espada, reluzindo sua armadura dourada ao sol. — Ainda não se cansou desse maniqueísmo, vovô?
— Deveria ter mais respeito para com as lendas de nosso povo, Lambech.
— Mas eu tenho vovô. -diz o guerreiro, sentando-se no chão entre crianças admiradas. — Só acho que as crianças deveriam estar na catequese há essa hora.
— A catequese é chata, Lambech! Preferimos o velho Almodóvar!- grita uma das crianças, sacudindo uma espada de madeira no ar, fingindo matar um monstro com um golpe certeiro.
Lambech sorri. Esse garoto animado o faz lembrar o quanto ele também odiava a catequese e só queria viver aventuras com seus amigos. Sempre achou essa história de Deusa muito chata, e é de se admirar que hoje esteja ocupando um cargo tão próximo da religião. Como Guardião, é o responsável pela segurança da Sacerdotisa, a autoridade máxima do Continente (tanto política quanto religiosa). Cargo esse que exerce com exímia devoção, mais por amor à Sacerdotisa que à deusa em si.
Lysolda é sua grande paixão desde os tempos de catequese, quando ele era só um aluno problemático e ela era a grande iniciada na religião. A grande predestinada ao trono do Continente.
— A Cruzada sairá essa tarde, vovô. Vim me despedir do senhor e pedir sua bênção.
O velho se esforça para levantar, e todas as crianças o ajudam. Sob o olhar atento dos pequenos, Almodóvar caminha rumo ao neto com seus passos arrastados de quem caminhou demais na vida. Os olhos do velho expressam uma sabedoria milenar, apesar de não ter de fato mais que 80 anos.
— Meu neto, sabes que essa empreitada é uma heresia, não?
— Puxa vovô, não me venha de novo com essa história.
— A Deusa nos colocou nesse pedaço de terra porque aqui é nosso lugar. É aqui que devemos ficar. Além do mar esconde perigos mortais. Estamos protegidos aqui.
— Esta terra já não nos suporta, vovô. Somos muitos e não há mais terras e recursos para tanta gente. O senhor pode notar que estamos sufocados aqui, precisamos expandir e colonizar novas terras.
— Não, não precisamos. E vamos nos arrepender dessa ambição.
Lambech ergue a espada e embainha num gesto rápido, arrancando exclamações admiradas das crianças.
A tarde chega com ventos do sul, prenunciando o inicio da grandiosa empreitada. O palácio esta movimentado, mais que o de costume. As donzelas da corte estão papagaiando algo sobre a partida da sacerdotisa Lysolda, elas dizem que ouviu que os conselheiros sugeriram que ela fosse à embarcação para marcar os interesses da religião nesta aventura.
Lysolda se encontra descansando em seus aposentos, pela ultima vez. Ela se levanta e olha pela janela, que exibe uma lindíssima vista para o porto de Carakamos, o porto que outrora servia apenas para atracar os barcos pesqueiros. Agora está movimentado com a esplendida e gigantesca nau que se estende por mais de cem metros de proa e vinte de altura, com velas gigantescas e brancas que trazem no centro o brasão do império da Deusa terra.
Lysolda, ao olhar este barco colossal, se sente minúscula e extremamente insignificante.
Arrepende-se um pouco por ter aceitado esta aventura, é quase loucura. Mas ao olhar para o porto novamente, sente-se mais segura ao ver o botânico do palácio. O sábio elfo Sianodel está se preparando para embarcar. “Como sempre, mestre Sianodel é muito cauteloso. Deve estar embarcando mais cedo para garantir que nada falte à viagem”.
Ela pensa e sorri agora mais calma (embora em seu coração ainda se esconda o verme do medo, algo na terra lhe aplica um mau pressentimento).
Lambech esta atrasado e corre com suas vestes de nobre, mas se sente pouco confortável nestas indumentárias pesadas que lhe faça lembrar sua armadura de batalha (que por sinal foi para o navio junto com seus outros pertences), ele finalmente chega ao porto onde os tripulantes e futuros exploradores estão se reunindo num burburinho ensurdecedor.
Os tripulantes lhe prestam continência e o olham com os rostos ríspidos, calando-se imediatamente, como guerreiros que estão diante de seu general (como se fossem para a guerra).
Após uma longa hora de espera, eis que se aproxima Lysolda e sua corte, e tem inicio a festividade formais para o zarpa mento da Nau corajosa que enfrentará o oceano e todos os seus mistérios.

Durante todo o festejo, enquanto a alta burguesia da cidade cumpria suas funções diplomáticas, Lambech manteve-se irrefutavelmente ao lado da sacerdotisa. Não por amor apenas, muito menos por ser essa sua função. O que verdadeiramente incomodava o guerreiro é um sentimento estranho e indefinido, como uma nuvem negra pairando sobre as ondas. Embaixo do elmo dourado, seus olhos avançam pelo mar até onde sua vista alcança. Talvez seu avô tenha razão. Os velhos sempre têm razão, e o velho Almodóvar em particular possui uma notável sabedoria.
Perigos se escondem naquele horizonte que nunca foi violado, e Lambech sente isso no vento. Desde sempre seu povo tem se mantido nesse continente, nem um de nós faz a menor idéia do que poderá haver além dessas ondas. Nossos barcos pesqueiros não foram muitas milhas além do porto de Carakamos.
As lendas falam de criaturas marinhas, criaturas terríveis muito diferentes das que encontram em terra firme. Uma conversa com Sianodel há poucas horas o mostrou que o sábio elfo tratou de fortificar o navio e nos manter devidamente armados. Mas nem mesmo Sianodel pôde dizer o que existe Além-Horizonte. Como podem se preparar para algo que não sabem o que é?
O velho caduco dessa maldita corte quer que Lysolda embarque rumo ao desconhecido julgando-se capazes de protegê-la.
Mas sentindo o sangue esfriar na face, tendo todo o porto em festa à sua frente, Lambech soube que aqueles homens não faziam a menor idéia do que estavam fazendo e eram todos torpes o suficiente para embarcar uma sacerdotisa indefesa rumo à morte. E o pior de tudo, o que mais lhe fere o coração, é saber que deverá (e por tudo o que há de mais sagrado, ele irá) protegê-la de todo mal que o oceano possa guardar para o destino desses mentecaptos. Irá protegê-la não por que é guarda-costas da princesa, mas sim por que a ama mais que tudo nesse mundo.
— O que aflige sua alma, guerreiro? – a voz melodiosa de Sianodel se projeta nas brumas de sua mente, arrancando-o de suas elucubrações. O elfo se aproxima com seu costumas passo lento, arrastando um manto azul bordado com motivos dourados. Sua pele é quase tão branca quanto à espuma que se quebra na praia abaixo deles. Na pontuda orelha esquerda, Sianodel carrega uma argola de prata, onde poucas pessoas conseguem notar a inscrição Adventum matim Calisto, que num esquecido idioma de seu povo das florestas, significa “aquele que trará a luz”.
— Tento não pensar nisso, mas o mar vibra ao meu encontro como uma fera enraivecida. Temo o horizonte, botânico, e não entendo como podem festejar diante desse mistério.
Sianodel baixa a cabeça e pensa um pouco antes de dizer qualquer coisa. Quando finalmente diz, o faz com uma assustadora certeza que abala Lambech:
— Se temes pela sacerdotisa bem mais do que temes por sua vida, és mesmo o melhor guardião que ela poderia ter.
Lambech volta os olhos pro mar. Nuvens negras se aproximam no horizonte, como um alarme. Não poderia confessar ao elfo seu amor secreto, nenhum lorde da corte da Deusa aceitaria um romance entre o guardião e a sacerdotisa. É contra as tradições milenares de seu povo, e são essas leis que vem garantindo a santidade da religião por tantas eras.
Mas como dizer aos religiosos da corte que acha isso tudo muito enfadonho, que são velhos caducos que nada entendem do amor e nada sabem sobre amar? Como dizer a eles que Lysolda o ama, mesmo sendo contra as suas leis cegas e nenhuma lei do mundo pode evitar que um coração bata junto a outro que também o ame?
— Você esconde segredos, guerreiro. Os segredos enfraquecem a alma. Tenha isso em mente quando os conflitos internos começarem a guiar sua espada.
— Não possuo outro motivo senão defender a sacerdotisa, botânico.
— Se é o que diz Lambech... Mas você é jovem e os jovens são impetuosos. Embora você seja valoroso, procure identificar qual a verdadeira motivação de sua espada, ou isso fará com ela falhe quando mais carecer de sua lâmina.
Lambech não responde, mas os 235 anos de Siadonel permitiram que o sábio elfo aprendesse a ler olhares, principalmente dos humanos, que de todas as raças civilizadas são os mais transparentes.
Pelo olhar Lambech, Sianodel soube exatamente que naquele momento o jovem guerreiro estava refletindo sobre o que acabara de dizer a ele.
E se sua intuição estiver correta, o garoto terá problemas.


Já faz algum tempo que a Nau navega rumo ao desconhecido e Lysolda ainda insiste em acenar para os minúsculos pontinhos que se agitam em Carakamos. E a sacerdotisa permaneceu ali acenando até não sobrar do continente mais que alguns contornos indefinidos por entre as ondas do mar.
Passos pesada se aproxima atrás de si, e antes mesmo de reconhecer a voz, Lysolda já sabia que se tratava de Lambech. O guardião fica respeitosamente na distância de um braço, como manda a tradição. Sem se virar, a bela jovem abaixa o lenço que esteve acenando nas últimas horas.
— O sol está se pondo, sacerdotisa. Sianodel a chama para a ceia.
— Me chame apenas de Lysolda, Lambech. Não estamos mais numa cerimônia religiosa e certas formalidades são desnecessárias aqui. Estamos num navio.
— Sim, mas...
Interrompendo-o, a garota se vira e o beija. Um beijo rápido, certeiro. Lambech se cala.
— Sente meu coração bater, Lambech? Acaso estamos vivos, não? Não somos marionetes de um espetáculo artístico. Somos pessoas. Acaso não somos?
— Sim, sacer.. Lysolda.
— Amo você, Lambech. A Deusa não condenaria tal amor, já que é tão puro e cristalino os rios da própria terra. Não ferimos nem blasfemamos contra a religião, apenas amamos. É esse um crime tão condenável?
— A corte... Eles jamais aprovariam tal ousadia e... Temo pela sua vida.
— Temes? Temes pela minha vida? – Os cabelos vermelhos de Lysolda se agitam furiosos no vento. Lambech mantêm o olhar fixo nos olhos dela.
— Temo por sua segurança nessa empreitada. Não saia de meu lado em momento algum, Lysolda. Pelo amor que sentes por mim, não saia de meu lado.
— Confias tanto em sua espada?
Lambech apenas assente com a cabeça. Lysolda sorri divertida, e caminha para a cozinha sabendo que Lambech a acompanhava com o olhar.
Sozinho no convés, ouvindo somente as ondas se chocarem contra o casco e o burburinho de gente lá embaixo, o jovem campeão observa o próprio reflexo na lâmina de sua pesada espada. Poucos guerreiro no continente conseguiriam empunhar uma arma tão destruidora com a maestria com que faz. Desde pequeno fora treinado para empunhar essa lâmina, fora moldado pelos melhores para ser o melhor.
E tornou-se o melhor entre os seus, mas ainda assim o fundo de seu coração esconde o medo de não ser o suficiente.

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