domingo, 2 de novembro de 2008

Parte 7 Areias Negras

O navio atraca no estranho solo da ilha, chocando-se com uma anormal areia negra, negra como tudo o mais nesse outro mundo desconhecido. Os tripulantes da Nau só distinguiam a terra pelo choque do casco e o eco surdo característico das porções de areia. O chão estava invisível, daí a supor tratar-se de areia negra: Mesmo nas mais enegrecidas luas o branco das praias sempre se faz enxergar. Mas nem mesmo os olhos de Sianodel conseguiram esquadrinhar a praia. Se for de fato areia que cobre o chão, e o elfo é levado a crer nisso pelo barulho do casco, então se trata de uma areia negra, e tal coisa só poderia ser fruto de magia, assim como boa parte de tudo o que vem se sucedendo aos homens dessa embarcação.
_Seus olhos vêem algo, botânico?- a voz de Lambech se projeta na escuridão. As lanternas a óleo do navio não conseguiam iluminar a praia.
_Não mais que você, guerreiro. Mas sinto cheiro de magia.
_Era o que temia elfo. Aquela criatura alada provavelmente veio daqui.
_Ordene aos homens que desembarquem na ilha. Mas peça que sejam atentos. Não sabemos o que encontrar até que o sol nasça.
Lambech desembainha sua espada e faz um sinal para os tripulantes que estavam no convés. Reunindo os guerreiros mais experientes, o Guardião aproxima-se mais uma vez do elfo, que fitava contemplativo o escuro palpável diante de si.
_Os homens irão, sem sombra de dúvida com toda a cautela. Mas não espere o sol nascer nesse lugar, elfo. Isso não irá acontecer.
_Como pode ter tanta certeza, Lambech.
_Basta olhar a lua e a escuridão. Não me parecem naturais. E seja qual for à magia aqui empregada, não cederá fácil.
Sianodel se curva no parapeito do navio. Algo monstruoso parecia erguer-se diante ao navio, mas a escuridão não permitia a visão de nada a não ser um vulto colossal. Algo parecido com uma montanha, ou uma construção gigantesca.
_Guardião!- grita um dos tripulantes do navio, brandindo uma cimitarra afiada e uma lanterna trêmula na mão direita.
Lambech se volta para o homem esbaforido, que parou ofegante frente ao volumoso guerreiro. Trazia em sua face à imagem do terror.
_Criaturas Aladas, senhor! Nunca vi nada assim em Higa nem nos mares em que estive! Criaturas como demônios do Abismo circulando o navio!
Como se uma trombeta soasse para coroar as palavras do soldado, um outro tripulante expele um grito de pavor que chamou a atenção de todos, ouvindo em seguida o farfalhar terrível de asas de morcego e o som de um corpo chocar-se naágua. Todos ficaram apreensivos e em prontidão, aguardando um segundo movimento ou uma palavra de ordem de Lambech.
O convés do navio mergulha no silêncio, nenhum homem ousou ao menos respirar.
Súbito, com mais um grito de terror, outro homem é arrancado do navio e arremessado ao mar, diante de todos que impotentes ouviram os gritos sem saber para onde olhar.
_Saiam todos do convés! - esbraveja Lambech, partindo para o centro do navio e tomando uma lanterna das mãos de um dos soldados. _Malkov, escolte Lysolda até os aposentos reais! RÁPIDO!
Assim que o Guardião ergue sua espada uma lufada de ar o joga de novo ao piso do convés, destruindo sua lanterna.
_Desgraçado, APAREÇA!
O vulto corta a escuridão logo acima de sua cabeça, a agitação no convés se torna mais intensa, e um a um os homens eram arrancados do piso e jogados no mar aos berros.
Durante um desses vôos de um dos soldados, a lanterna que ele segurava rodopiou a alguns metros do chão e Lambech vislumbrou aterrorizado a face de uma das criaturas. Um enorme morcego peludo, com muitos dentes e muitos olhos, como um maldito demônio do Inferno. O som que sua garganta fazia era agudo e incisivo, como se mil harpias berrassem em seus ouvidos.
Arrastando-se para não ser pego pelas garras e jogado ao mar, Lambech tenta chegar até as escadas que levam aos aposentos reais.



O soldado Malkov sempre foi um servo fiel e dedicado. Quando a corte reuniu seus melhores soldados para tripular esse navio, ele foi o único a se voluntáriar. Estava ali por amor e lealdade ao reino e para isso iria até os confins da terra. Até então não havia tido a oportunidade de mostrar ao Campeão seu valor como soldado, mas tinha fé que esse momento logo chegaria. A Deusa logo recompensaria seu valor e dedicação.
Por isso ele mal acreditou quando em meio à confusão do convés, Lambech gritou seu nome e o mandou cuidar da sacerdotisa.
Ora, todos em Hyga sabem o quanto Lambech é obcecado com sua missão de guardar a sacerdotisa Lysolda. Muitos até suspeitam da relação dos dois, tamanha sua dedicação. Dizem as más línguas que ele não permite que nenhum outro homem se aproxime dela às sós.
E agora ele, Malkov, que acreditava que Lambech nem sequer lhe conhecia o nome, estava incumbido de proteger Lysolda enquanto o seu guardião lutava no convés.
A excitação é imensa quando ambos entram nos aposentos da sacerdotisa e trancam a pesada porta de carvalho por dentro. Aquele aposento era o mais seguro de todo o navio e foi uma sábia decisão de Lambech mandá-los para cá.
_Sacerdotisa, está tudo bem?
_Sim, Malkov, obrigada – diz Lysolda, sentando-se na cama e lançando um olhar preocupado para a escuridão que se via pela janela.
Ela também o chamou pelo nome, isso é fantástico. Malkov sorri e enche o peito de ar, jurando pra si mesmo que até Lambech chegar ninguém encostará um só dedo em Lysolda.


A criatura alada mais uma vez joga Lambech contra a sólida parede de carvalho que faz divisa à cabine da nau. Restavam poucos homens lutando no convés, a grande parte já havia sido arremessada no mar e não deram mais sinal de vida.
Lambech, com a espada diante de si, rasgava ainda no ar tudo o que se aproximava. Talvez seus golpes cegos tenham acertado uma ou duas dessas criaturas, mas pareciam haver muito mais no convés do navio.
Derrepente uma enorme bola de fogo se materializa em pleno convés do navio numa explosão quase cegante de chamas e luz, que num só golpe incinerou algumas dúzias desses demônio morcegos, reduzindo tudo a cinzas fosforescentes no ar.
_Eu só tenho mais dois disparos, Lambech! Tire Lysolda do navio! - gritou Sianodel no lado oposto do convés, enquanto uma nova esfera infernal se formava na ponta de seu cajado de madeira.
Atravessando um demônio com sua espada, Lambech joga o pesado corpo da criatura para o lado, que cai no piso como um saco de grãos.
_VAI! - grita Sianodel, fazendo explodir mais uma bola de fogo no convés, reduzindo a cinzas uma outra boa parte das criaturas, que ainda assim pareciam não diminuir sua quantidade.


O barulho começou primeiro longe, depois foi se aproximando, até os vultos começarem a cortar a escuridão da janela com seus gritos pavorosos. Ao aperceber-se do perigo que a sacerdotisa corria se uma das criaturas entrasse ali pela janela, Malkov imediatamente vira uma pesada mesa de madeira e a coloca bloqueando a passagem da janela, no exato momento em que uma das criaturas se choca contra a abertura. Como se um leão se jogasse contra a mesa, Malkov precisou de muita força para manter a mesa no lugar e impedir a passagem do demônio alado.
_Eles não podem entrar, Malkov!
_Eles não entrarão, sacerdotisa, eu prometo! - diz o soldado, segurando com o próprio peso a pesada mesa na janela.
Nesse momento ouve-se uma estrondosa explosão acima de suas cabeças, fazendo tremer todo o navio pela terceira vez desde que chegaram nesse quarto.
_Isso parece efeito de magia, Malkov! - observa Lysolda, inquieta e assustada.
_Vamos torcer para que seja o elfo, sacerdotisa.



Quando a terceira esfera de fogo explodiu, lambech estava no meio das escadas do convés e o tremor do navio todo o jogou contra as paredes, terminando por rolar escada abaixo até a pesada porta de carvalho do aposento real. Sacudindo a cabeça, o guerreiro se concentra na porta. Não é hora de amolecer numa queda idiota. Posicionando seus pulsos na bem trabalhada porta, começa a bater gritando por Lysolda, apesar da cacofonia ensurdecedora que envolvia todo o navio.
Nesse momento uma quarta explosão ecoa pelo convés às suas costas, jogando-o novamente ao chão. Essa foi maior e mais terrível, balançando toda a madeira a ponto do navio ranger ante ao impacto.
Num arrepio que lhe ascendeu ao dorso, Lambech lembrou-se das palavras de Sianodel antes de descer. Só haviam mais DOIS disparos.
Pela Deusa, quem haveria causado essa quarta explosão?
_Até mesmo os deuses antigos sabem respeitar o conhecimento, jovem guerreiro - a voz pareceu sair da terra, e cresceu como uma sombra por trás de Lambech. Era como se a voz viesse em sua mente e não em seus ouvidos. O guerreiro vira-se tentando erguer sua espada, mas o terror o toma por completo ao ter diante de si a assustadora figura que descia as escadas em sua direção, arrastando uma enorme e negra armadura como se não pesasse nada, tendo nas mãos uma espada de lâmina desproporcional à força humana. Se tal a arma é mesmo forjada em metal, Lambech estava certo que o rosto dentro daquele elmo negro não podia de forma alguma ser humano.
_Engenhoso o método utilizado pelo elfo para espalhar com mais efeito as chamas de sua magia. Que nome deram àquele fantástico pó que espalhou no vento antes de invocar suas chamas?
_Quem é você? - pergunta Lambech, tentando não vacilar a voz espremido contra a parede.
_Tenho muitos nomes. Necromante. O Maldito. Lich... Mas você não ouviu nenhum deles porque o conhecimento não é algo valorizado em seu mundo.
_Do que está falando, maldito? Onde está o botânico?
_Fala do elfo? Apesar de haver achado realmente genial aquele pó explosivo, não resisti a alimentar meus morcegos com seu sangue nobre. Ah sim, é claro que ele fede a sangue nobre. E você também, garoto - ao dizer isso, o cavaleiro negro se prostra bem frente à Lambech, evidenciando o fato do macabro cavaleiro ser quase um metro e meio maior que o guerreiro guardião.
_Aí dentro está aquela que virá comigo. A sacerdotisa.
_JAMAIS! - grita Lambech, golpeando em cheio o peito do cavaleiro com sua espada, iluminando todo o vão de escadas com suas faíscas de metal, mas não arrancando da armadura negra uma lasca sequer.
_Levarei a sacerdotisa comigo para que o povo de Hyga saiba que o conhecimento não deve ser enclausurado numa biblioteca empoeirada enquanto o mundo fervilha de sabedoria e poder. Guarde essas palavras, Guardião. Conhece-se bem sua raça, sei que virá atrás da sua amada.
_Ora, seu...
_Sei que a ama, garoto. Está em seu olhar, no seu medo, na sua respiração. E sei também que virá atrás dela por que és um tolo. Ou porque como eu, queira o SABER. Quando vier, eu, Átila, estarei esperando.
E dizendo isso, o cavaleiro negro ergue a sua pesada espada de metal negro como sua armadura.

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